sábado, 13 de outubro de 2012

O Cardeal tem razão

O Cardeal-Patriarca tem razão: as manifestações não resolvem nada. Todavia, isto não quer isto dizer que elas sejam inúteis. E que quer isto dizer? As manifestações não resolvem, porque aquilo a que elas se opõem -a redução dos salários, para os trabalhadores no activo; das reformas, para os reformados; dos subsídios, para os incentivados; dos lucros, para os empresários; e o aumento dos impostos, para os contribuintes em geral- não é detido nem refreado por elas. E no entanto, elas não são inúteis porque chamam a atenção e espicaçam a acção, que é o motor da mudança. Pelo menos, incomodam a imobilidade dos prejudicados, levando-os a agir. Esta aparente incongruência reside na diferença dos planos em que as manifs ocorrem e em que os problemas podem ser resolvidos. Aqueles, por enquanto, não coincidem, por duas razões: primeira, porque os manifestantes não identificaram ainda uma causa comum (na base estão razões pessoais ou familiares, por exemplo, o emprego próprio ou dos filhos), e em segundo lugar porque se exige que "os políticos" resolvam os problemas. Dupla fraqueza, que tem de ser superada para que este movimento generalizado valha a pena. Por um lado, o protesto individual e conjunto tem de se tornar solidário, quer dizer, a causa de cada manifestante, que coincide no momento com o dos outros, tem de passar a ser a de todos os outros. E depois, a ingenuidade de supor que "os políticos" resolverão os nossos problemas terá de ser substituída pela consciência de que nos cabe, a todos, resolver esses problemas comuns, de que solidariamente participamos. ("Os políticos", esses de quem falamos, têm-se atarefado a resolver os seus próprios problemas...) Da mesma forma que identificar as pessoas pelos nomes nos ajuda a saber com quem falamos, dar nomes às coisas, identificando-as pela sua denominação consagrada, ajuda-nos a perceber do que falamos e a compreender os planos em que os problemas se nos apresentam. Ora, essa causa comum que as manifestações de rua ainda não nomearam, tem de há muito um nome, que designa um conjunto de aspirações comuns e uma realidade histórica, geográfica e social vivente: chama-se Portugal e a ela se refere, com notável poder de síntese, o artigo primeiro da Constituição, que aliás até lhe indica um rumo. E esse plano de acção em que a mudança se pode operar também está identificado: é a política. Isto é, o actual estado de coisas, em Portugal, muda-se pela acção no plano político. No 25 de Abril, tratava-se, antes de tudo, de derrubar o regime; hoje, trata-se -antes do resto- de mudar a classe política e o papel dos partidos na vida política. Em democracia esta mudança só se fará mediante eleições que releguem à sua insignificância os actuais partidos que, pelos vistos, não são representativos dos portugueses (é ingénuo supor que eles mudem, contra os seus próprios interesses). Mas isso só é possível mediante outro partido, que apresente ao sufrágio eleitoral candidatos escolhidos pelos eleitores, num escrutínio primário e numa base próxima da concelhia, que é a organização social de base mais antiga no nosso meio social e político. Depois das eleições, é preciso que esse próprio partido se extinga, de modo a que os eleitos respondam perante os eleitores e nada devam à organização partidária. (De outra forma, tudo ficaria na mesma). Nessa condição, talvez esses eleitos do Povo possam ser bases para a criação de novos partidos, no ambiente de uma nova classe política, para que a democracia viva. É pouco, mas é o que a democracia nos faculta. Poderá haver outros caminhos, sim; mas será preferível ir por aqui, pois na dúvida é sempre melhor ouvir o Povo. Sobretudo quando este se pronuncia serenamente, na intimidade da cabina de voto. É por isto que o Cardeal Patriarca tem razão.